terça-feira, 19 de agosto de 2008

Seeding Trials


Ou como "roubar" em um estudo científico. Ao checar os links do outro post, achei essa jóia. A história é a seguinte: Em 1999 a Merck & Co propôs um estudo com um novo analgésico/antiinflamatório chamado Vioxx, cujo nome químico é rofecoxib. Devido a disputas judiciais (decorrentes principalmente do fato de medicações desta classe causarem um aumento da mortalidade cardiovascular, entre outros efeitos), a justiça americana teve acesso a documentos confidenciais da empresa, referentes às estratégias de marketing envolvidas no estudo e isso gerou várias publicações e posts.

Esse tipo de estudo é um exemplo de seeding trial por disseminar os procedimentos do protocolo entre os médicos participantes do estudo - que em geral, já são formadores de opinião, a saber, têm suas condutas imitadas por outros médicos. Assim, a prescrição de um medicamento em determinada situação clínica vai se disseminando (disseminare = semear) entre os médicos.

Há muito tempo se "sabia" desse tipo de procedimento. Os laboratórios tinham um tipo de "estudo" que era o seguinte: distribuíam um documento (invariavelmente, bem escrito, em papel excelente) para o médico preencher em cada paciente que arrumasse para uso de determinado produto. Como esses casos seriam agrupados para um futuro estudo (!?), o médico (ou a instituição seriam reembolsados) por caso. Eu mesmo tive várias propostas desse tipo.

No caso deste estudo, a diferença é que tudo foi devidamente escancarado à opinião pública! Todo mundo sabe que existem certas práticas que não são assim, digamos, exemplo de ética. Entretanto, quando a coisa é exposta à sociedade há uma consternação geral. Uma indignação. É fato que isso ocorreu há quase 10 anos e a lei do compliance veio melhorar a relação promíscua entre médicos e Big Pharmas, porém muito ainda há a ser feito, principalmente no Brasil, onde, pra variar, não temos legislação específica. Reproduzo o primeiro parágrafo da discussão do artigo:

"Merck conducted a seeding trial to promote the prescription of Vioxx. The trial coincided with the FDA’s approval and the availability of the product on the market in 1999. Although billed as a gastrointestinal safety study, ADVANTAGE was actually a sophisticated marketing tool designed to allow optimal “seeding” of positive experiences with Vioxx among customers—primary care physicians— before its approval. As a result, 5557 participants received Vioxx and 600 investigators prescribed it just before it became available on the market, which generated positive publicity and anecdotes from physicians and patients (7,22). Sales of Vioxx could then benefit from a “2-step flow” of media influence, with Merck’s marketing enlisting ADVANTAGE investigators as advocates who in turn influenced many other physicians and patients (27)."

Sem outros comentários.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Contra o Diagnóstico


Um artigo do Annals Internal Medicine de 5 de Agosto chamou a atenção dos médicos. O artigo tem o título “Against Diagnosis”( Ann Intern Med. 2008;149:200-203). Como pode alguém publicar um artigo “contra o diagnóstico”? Na verdade, a proposta dos autores, que são epidemiologistas do Memorial de Nova Iorque, é que pensar na doença em termos de predição de risco é muito mais vantajoso que pensar nela em termos de diagnóstico. Vejamos:

Para eles, existem duas vantagens principais: 1) Dado que muitas variáveis em medicina são contínuas, p.ex. glicemia de jejum, pressão arterial, etc; qual seria o nível a partir do qual classificaríamos um paciente de hipertenso ou não? Diabético ou não? 2) E se o paciente tivesse vários fatores de risco, não valeria a pena colocarmos o “sarrafo” mais acima para evitar complicações precoces? Todas essas perguntas realmente colocam em xeque a abordagem da doença via arbitrariedade do diagnóstico. O diagnóstico como ferramenta cognitiva binária não dá conta do contínuo de variáveis de um ser humano real. Principalmente quando tratamos de doenças com intervalo de normalidade arbitrário.

Confesso que o texto é sedutor. Entretanto, quando acabei de ler, fiquei com aquela sensação de que não percebi o truque, ou que caí em alguma pegadinha. Depois de ruminar o texto alguns dias, achei uma explicação em um texto de epidemiologia. Tentarei expor isso nos próximos posts.

sábado, 16 de agosto de 2008

Da cor do Cielo


Não posso deixar de registrar. Ao final de pouco mais de 20 segundos, frequência cardíaca de mais ou menos 200 batimentos por segundo, lactato sérico nas alturas, acidose metabólica que faria qualquer intensivista arrepiar, o Brasil ganha, após 68 anos, sua primeira medalha dourada na natação.

Sem respirar. Os dentes à mostra nas braçadas finais. Um menino. Um monstro. Uma lenda. Dourada da cor do cielo.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Os Efeitos Colaterais do Rastreamento


Há um pensamento comum de que caso se possa detectar precocemente uma doença, é melhor que o façamos o mais rapidamente possível, principalmente quando ela for potencialmente letal como por exemplo, um câncer de próstata ou mama. O que não é comum é a idéia de que isso possa trazer prejuízos, muitas vezes graves. A bem da verdade, alguns exames de rastreamento podem de fato trazer mais problemas que a própria doença que procuram.

Um exame de rastreamento (em inglês, screening) para ser útil em rastrear uma doença em grande escala, precisa ser pouco invasivo (de preferência, um exame de sangue ou raio-x simples), barato, ter poucos resultados falso-positivos e falso-negativos. Disse poucos, porque é impossível eliminar situações onde resultados são positivos e o paciente NÃO tem a doença (falso-positivo) ou negativo, o que é mais grave, e o paciente TEM a doença. Por essa razão, os testes de rastreamento em geral são mais sensíveis que específicos o que significa que raramente deixam escapar o diagnóstico. Em compensação, às vezes diagnosticam doenças em quem não tem nada. Se deixar escapar um diagnóstico de uma doença letal é muito grave, diagnosticar doença em quem não tem gera um problema sério: novas condutas!

Esclareço. Um exame de próstata positivo pode gerar uma biópsia prostática. Múltiplas pequenas perfurações que, não raro, sangram de forma importante. Uma imagem estranha na mama pode gerar múltiplas biópsias e um comprometimento psicológico difícil de quantificar por quem nunca passou por uma situação dessas.

Por isso, o debate sobre o screening do câncer de próstata continua e parece interminável. Alguns aproveitam a ansiedade que muitos pacientes têm e, a exemplo do que acontece com o teste de gravidez, lançam teste de autodiagnóstico para câncer de próstata!! Um paciente que compra esse kit sem falar com seu médico já tem um grau de ansiedade maior do que a população normal. Imagine se o teste der um falso positivo!

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

A Blogerização do Pensamento Científico?


Na Science de 18 de Julho, um artigo tem chamado a atenção de blogs científicos. A pergunta do artigo é: qual é o efeito da disponibilização online de revistas nas citações científicas? A pesquisa online alargaria as citações e permitiria a inclusão de artigos fora do círculo de revistas principais em cada campo. Usando modelos matemáticos complexos, o autor demonstra que o que ocorre é exatamente o contrário. Quanto mais online a revista vai ficando (o que o autor chama de deeper backfiles, ou seja, vai colocando seu conteúdo antigo online), mais os autores citam artigos mais recentes e de cada vez menos revistas, restringindo-se às principais de cada campo. Isso se deveria a uma maior velocidade em se atingir a opinião prevalente na literatura, segui-la e assim, objetivamente, citar menos artigos: "By enabling scientists to quickly reach
and converge with prevailing opinion, electronic journals hasten scientific consensus." Mas, no melhor estilo pós-moderno, o autor arremata: "Findings and ideas that do not become consensus quickly will be forgotten quickly." Nada mais certeiro.

Além disso, há uma mudança na forma de browsing. Os cientistas estão usando cada vez mais hyperlinks!:

"Moreover, hyperlinking through an online archive puts experts in touch with consensus about what is the most important prior work—what work is broadly discussed and referenced. With both strategies, experts online bypass many of the marginally related articles that print researchers skim."

Os hyperlinks são linguagem corrente de fóruns, blogs e emails. Formas já clássicas de discussão no ciberspaço. A cibercultura invade a comunicação científica. Ou é o inverso?

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Nervo Exposto

Não parece haver muita controvérsia sobre o fato de que um médico, ao agir com o fim de salvar vidas e/ou minimizar o sofrimento humano, tem uma clara e direta agenda moral. O que não é muito claro é se quanto mais sério ele encarar essa agenda, mais ele deve tornar-se um cientista objetivo. Isso devido ao modelo de racionalidade médica vigente.

Quando confrontado com problemas morais, cientistas tendem a esquivar-se. Como cientistas, sua glória é a excelência em ser técnico. Isto alivia sua consciência e deixa a Ética para os filósofos morais ou místicos de plantão. E, entusiastas da hiperespecialização, os cientistas dividem o trabalho de refletir e acham isso confortável. No final, sempre se pode dizer: “Esse cara está falando muita bobagem porque não conhece o assunto, não vive o cotidiano da ciência e não tem autoridade para nos criticar”.

Como George Simpson chama a atenção:

“To accept the divorce of science from morality is to accept the existent organization of social relationships by not inquiring into the degree to which it holds rational values in common with science. This divorce makes science as a vocation and activity a form of adjustment to any dominant social values. It also makes social problems immune to standards of judgment derived from the social role of the scientist.”

A sobrescrição dos valores sociais pela racionalidade científica, a ascensão dos "experts" e a tecnocracia são os resultados dessa simples fórmula. Na Medicina a tensão é ainda maior. Ela é um valor social em si. Mais que um serviço. Mais que um produto. Nela, a Moral é consubstanciada e escancarada. Como um nervo exposto.

domingo, 3 de agosto de 2008

Ainda Sobre Cientistas Éticos

Falling Apart at Street Anatomy

Achei com algum atraso, um post e um artigo da Science sobre ética científica. O post é do excelente Spoonful of Medicine, cujo feed já se encontra ao lado. O artigo refere-se a um juramento que os novos pós-graduandos da Universidade de Toronto devem se submeter para, digamos, evitar certas "coisas" que estão acontecendo na Ciência Médica mundial. Segue o juramento na íntegra e o artigo no link da Science (para assinantes).

"I, [NAME], have entered the serious pursuit of new knowledge as a member of the community of graduate students at the University of Toronto.

"I declare the following:

"Pride: I solemnly declare my pride in belonging to the international community of research scholars.

"Integrity: I promise never to allow financial gain, competitiveness, or ambition cloud my judgment in the conduct of ethical research and scholarship.

"Pursuit: I will pursue knowledge and create knowledge for the greater good, but never to the detriment of colleagues, supervisors, research subjects or the international community of scholars of which I am now a member.

"By pronouncing this Graduate Student Oath, I affirm my commitment to professional conduct and to abide by the principles of ethical conduct and research policies as set out by the University of Toronto."

Por que criar um juramento para novos cientistas? Os autores respondem:

"The realities of the nuclear age, more frequent acts of bioterrorism, and biotechnological advances such as cloning and stem cells have fueled a call for a similar oath tailored to biomedical scientists that would encourage awareness and discussion of the social and moral responsibilities of students in the life sciences (1-4). At the Institute of Medical Science (IMS), Faculty of Medicine, University of Toronto, as elsewhere, there is rising recognition of the potential for academic misconduct, in part due to the computer and Internet age, in which there is free access to and exchange of information derived from anonymous sources. Another factor is the increasingly competitive nature and "pressure cooker" milieu of scientific training programs due to the pace of scientific progress. Finally, there is the perception that current students take plagiarism, misrepresentation of facts, and scientific fraud less gravely than did previous generations of scientists. Clearly, the time is ripe to consider improved strategies for instilling basic values about acceptable and expected behavior (5, 6)."

É isso aí...