domingo, 21 de setembro de 2008
MUDANÇA DE ENDEREÇO
Tenho certeza que esses 8 meses foram proveitosos, principalmente para mim.
Gostaria de continuar contando com a participação de todos na "nova casa".
domingo, 14 de setembro de 2008
Quociente de Inteligência e Orientação Política
Em tempos de eleição é sempre importante darmos uma checada nas nossas escolhas. Principalmente se pudermos fazer uma escolha "inteligente". Por anos, psicólogos, sociólogos, antropólogos e cientistas das mais variadas áreas têm tentado demonstrar uma relação entre "inteligência" e "orientação política". Seriam os liberais mais inteligentes ou não?
Um artigo in press da revista Personality and Individual Differences tenta abordar esse assunto. O título é direto: "Is there a relationship between political orientation and cognitive ability? A test of three hypotheses in two studies. O autor é Markus Kemmelmeier, sociólogo da Universidade de Nevada. (para o abstract, clique aqui). Segundo o resumo:
"Two studies tested one linear and two curvilinear hypotheses concerning the relationship between political conservatism-liberalism and cognitive ability. Study 1, focusing on students at a selective US university (n = 7279), found support for the idea that some dimensions of conservatism are linked to lower verbal ability, whereas other dimensions are linked to higher verbal ability. There was also strong support for political extremists both on the left and right being higher in verbal ability than centrists. Study 2 employed aggregate data pertaining to the 50 US states and demonstrated that conservatism was linked to lower cognitive ability in states with high political involvement, but found conservatism to be correlated with higher average ability in states with low political involvement. The discussion addresses potential implications and criticisms of this research."
O assunto é complexo. Até Theodor Adorno deu os seus pitacos em 1950! (ver aqui e aqui). Fico pensando se o QI é um bom método para medir tais variáveis, se não existiria um bias de publicação e se ser de "esquerda" nos EUA é a mesma coisa que ser de "esquerda" na França ou no Brasil. Não consigo desvincular tais publicações de tentativas de legitimação, mas vindo de um país como os EUA, tudo fica muito confuso. Gostaria de ouvir a opinião dos leitores.
domingo, 7 de setembro de 2008
Ecce Medicus
O Ecce Medicus surgiu da necessidade de uma reflexão mais aprofundada da prática médica. Acredito que a Medicina passa por uma profunda crise. Uma crise num produto científico-cultural como é a Medicina, sempre se manifesta sob várias perspectivas, e nunca vem isolada. Fazem parte: o esgotamento ético que tem por base o próprio médico, o paciente e tudo que gira em torno dessa relação como grandes conglomerados farmacêuticos, fornecedores de materiais médico-cirúrgicos, convênios e seguradoras de saúde, instituições hospitalares e acadêmicas, políticas de saúde nos diferentes países e culturas do planeta. A tecnologização da prática médica e a quase impossibilidade de percepção desse fenômeno pelo médico comum. A redução da ciência médica à tecnologia e seus derivados imediatos tendo como consequência mais grave, a constituição contemporânea do conceito de doença pela tecnologia ela mesma, entre outros tantos problemas.
Com isso, não poderia furtar-me da filosofia. Muito mais uma reflexão sistemática que um filosofar rigoroso, a filosofia do Ecce Medicus é indissociável do mundo da vida, em especial do mundo da prática médica. Com Rorty, acredito que o papel da filosofia hoje é muito mais explicar nossa cultura e provocar reflexões críticas.
Assim, pretende-se, ambiciosamente, produzir uma crítica da razão médica. Eritis sicut dii, a epígrafe do blog, é a fala da Serpente do Paraíso à Eva - “sereis como deuses” - ao oferecer-lhe a maçã do conhecimento. É o que alguns médicos arrogante e inocentemente acham de si. Entretanto, é uma divina dúvida que quero revelar. É a autópsia desse pensamento técnico e moral do médico contemporâneo que me interessa. Seu pequeno mundo, suas certezas, seus deslizes, suas angústias, são o material que servirá de objeto aos propósitos desse weblog. Para que se possa contribuir com um conhecimento - não como um pacote pronto, mais que isso - um projeto sempre inacabado - de como um médico se torna o que é, nos dias de hoje.
Eis o médico, pois. Ecce Medicus.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
O Risco
Na Epidemiologia do Risco, a "velha" epidemiologia observacional das doenças infecciosas, com inveja das ciências médicas experimentais, abandona sua antiga metodologia da exposição e passa "a tratar principalmente das doenças crônicas não-transmissíveis, para as quais os métodos observacionais ainda não foram completamente explorados. Através do estudo das circunstâncias sob as quais essas doenças experimentam uma prevalência incomum, espera-se identificar áreas nas quais o trabalho experimental laboratorial possa se concentrar para a identificação dos agentes causais específicos."
No Risco, a especulação causal é a razão de ser da investigação biomédica e deve sugerir vínculos causais para que as ciências biomédicas experimentais explorem "adequadamente" tais associações. Uma das principais críticas desse tipo de atitude é sua inerente "rarefação teórica". Se quer dizer com isso que a validação das proposições geradas na epidemiologia do risco não vem de "dentro", mas de "fora", ou seja, das ciências biomédicas, ditas "duras". Ao terceirizar seu discurso de verdade, a epidemiologia ficou refém da doença e de seus correlatos.
Essa situação abre caminho para as deformações do pensamento médico da atualidade e aqui me distancio do professor José Ricardo Ayres. Hoje a Epidemiologia do Risco (com toda sua rarefação teórica) substitui a Anatomia Patológica na racionalidade médica contemporânea! A validação do discurso da Anatomia Patológica era dada através da própria experimentação e análise post-mortem. A Epidemiologia do Risco não valida seu discurso, remete essa tarefa às ciências biomédicas, que sem saber para onde ir, por sua vez, erram sem destino, dando a exata sensação de caminhar em círculos. Ao transferir esse raciocínio para a esfera do mundo acadêmico, entendemos as "máquinas de publicação", fator impacto, medicina baseada em evidências e todos os fatores que tornam a medicina contemporânea excelente, porém praticada por médicos muito ruins.
domingo, 31 de agosto de 2008
Auto-Retrato
sábado, 23 de agosto de 2008
Epidemiologia da Exposição
A grande marca das ciências modernas é terem se estruturado num modo de argumentar baseado na experimentação, ou apoiado na dedução lógica e/ou na matemática. A forma de se fazer perguntas sobre o mundo e a obtenção de respostas com valor de verdade apóiam-se fundamentalmente nas relações formais entre hipóteses e conclusões, retiradas das ciências chamadas "duras".
A Epidemiologia não queria ficar para trás. Por isso, William Heaton Hamer, personagem paradigmático do período, na década de 30 construiu as curvas de epidêmicas do sarampo na Inglaterra. Com elas, os períodos de aumento e diminuição dos casos ao longo dos anos não precisavam mais de teorias miasmáticas e metafísicas para sua explicação. Sigamos Ayres:
"Embora Hamer tenha construído seu raciocínio ainda muito influenciado por conceitos e concepções da epidemiologia da constituição, esse epidemiologista fornece uma base bastante interessante para a sua sucedânea, a epidemiologia da exposição. Isto porque, por um lado, abriu um importante espaço para a quantificação, o que viria a ter enorme importância na década de 30, após os significativos avanços que a estatística alcançou na década de 20. Por outro lado, o equacionamento dos diversos fatores envolvidos nos fenômenos epidêmicos e a elaboração de seus potenciais desdobramentos em função de suas relações matemáticas, confere aos fenômenos epidêmicos possibilidades de manipulação e preditibilidade extremamente interessantes para o ambiente pragmatista que passava a dominar a cena da época."
Com isso, chegamos à Epidemiologia do Risco.
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
O Paradigma do Risco
Vamos seguir o raciocínico de José Ricardo Ayres no paper Epidemiologia, promoção da saúde e o paradoxo do risco da Revista Brasileira de Epidemiologia, 28 Vol. 5, supl. 1, 2002. Nos interessará principalmente o processo de construção histórico-epistemológica da epidemiologia do risco, como também bastante mais aprofundado no livro do mesmo autor "Sobre o Risco" (infelizmente esgotado!)
A evolução do pensamento epidemiológico pode ser dividida em três grandes períodos definidos pela completude da penetração da modernização no discurso científico que lhe servia de base. Essa evolução pode ser avaliada em três eixos principais: 1) controle técnico das doenças como objetivo normativo; 2) comportamento coletivo dos fenômenos patológicos; e 3) variação quantitativa linguagem que mais autenticamente expressava a possibilidade de se apreender e intervir sobre tais fenômenos coletivos e o seu controle técnico.
O primeiro período é chamado de Epidemiologia da Constituição (1872-1929). John Snow é quem primeiro aplica conceitos modernos de epidemiologia na epidemia de cólera da Londres vitoriana. Nesse período inicial, o Instituto de Higiene de Munique fundado por Pettenkofer é o exemplo para a escola de Saúde Pública da Johns Hopkins. De caráter mais pragmático e atuante, veio modificar o pensamento epidemiológico da época por utilizar-se de uma "macrofisiologia" para explicação dos fenômenos de saúde pública, como um "Claude Bernard" epidemiológico. Aqui, já começa a aparecer traços do risco. Nas palavras do autor:
"O termo risco começa a surgir no jargão epidemiológico ainda em plena fase da epidemiologia da constituição, em torno dos anos 20. À proporção que o conceito de “meio externo”, relacionado a uma perspectiva mais teorética e ontológica acerca das “constituições” desfavoráveis à saúde, vai se rarefazendo conceitualmente, o risco vai se adensando, configurando uma perspectiva mais tecnicista e pragmática de tratar dos mesmos fenômenos. À medida em que o meio vai sendo marginalizado na estrutura argumentativa da epidemiologia, o risco vai definindo a sua centralidade até assumir, numa nova configuração discursiva, um papel definidor da perspectiva analítica mais característica da ciência epidemiológica."
Continuaremos com a Epidemiologia da Exposição e Epidemiologia do Risco.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Seeding Trials
Ou como "roubar" em um estudo científico. Ao checar os links do outro post, achei essa jóia. A história é a seguinte: Em 1999 a Merck & Co propôs um estudo com um novo analgésico/antiinflamatório chamado Vioxx, cujo nome químico é rofecoxib. Devido a disputas judiciais (decorrentes principalmente do fato de medicações desta classe causarem um aumento da mortalidade cardiovascular, entre outros efeitos), a justiça americana teve acesso a documentos confidenciais da empresa, referentes às estratégias de marketing envolvidas no estudo e isso gerou várias publicações e posts.
Esse tipo de estudo é um exemplo de seeding trial por disseminar os procedimentos do protocolo entre os médicos participantes do estudo - que em geral, já são formadores de opinião, a saber, têm suas condutas imitadas por outros médicos. Assim, a prescrição de um medicamento em determinada situação clínica vai se disseminando (disseminare = semear) entre os médicos.
Há muito tempo se "sabia" desse tipo de procedimento. Os laboratórios tinham um tipo de "estudo" que era o seguinte: distribuíam um documento (invariavelmente, bem escrito, em papel excelente) para o médico preencher em cada paciente que arrumasse para uso de determinado produto. Como esses casos seriam agrupados para um futuro estudo (!?), o médico (ou a instituição seriam reembolsados) por caso. Eu mesmo tive várias propostas desse tipo.
No caso deste estudo, a diferença é que tudo foi devidamente escancarado à opinião pública! Todo mundo sabe que existem certas práticas que não são assim, digamos, exemplo de ética. Entretanto, quando a coisa é exposta à sociedade há uma consternação geral. Uma indignação. É fato que isso ocorreu há quase 10 anos e a lei do compliance veio melhorar a relação promíscua entre médicos e Big Pharmas, porém muito ainda há a ser feito, principalmente no Brasil, onde, pra variar, não temos legislação específica. Reproduzo o primeiro parágrafo da discussão do artigo:
"Merck conducted a seeding trial to promote the prescription of Vioxx. The trial coincided with the FDA’s approval and the availability of the product on the market in 1999. Although billed as a gastrointestinal safety study, ADVANTAGE was actually a sophisticated marketing tool designed to allow optimal “seeding” of positive experiences with Vioxx among customers—primary care physicians— before its approval. As a result, 5557 participants received Vioxx and 600 investigators prescribed it just before it became available on the market, which generated positive publicity and anecdotes from physicians and patients (7,22). Sales of Vioxx could then benefit from a “2-step flow” of media influence, with Merck’s marketing enlisting ADVANTAGE investigators as advocates who in turn influenced many other physicians and patients (27)."
Sem outros comentários.
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Contra o Diagnóstico
Um artigo do Annals Internal Medicine de 5 de Agosto chamou a atenção dos médicos. O artigo tem o título “Against Diagnosis”( Ann Intern Med. 2008;149:200-203). Como pode alguém publicar um artigo “contra o diagnóstico”? Na verdade, a proposta dos autores, que são epidemiologistas do Memorial de Nova Iorque, é que pensar na doença em termos de predição de risco é muito mais vantajoso que pensar nela em termos de diagnóstico. Vejamos:
Para eles, existem duas vantagens principais: 1) Dado que muitas variáveis em medicina são contínuas, p.ex. glicemia de jejum, pressão arterial, etc; qual seria o nível a partir do qual classificaríamos um paciente de hipertenso ou não? Diabético ou não? 2) E se o paciente tivesse vários fatores de risco, não valeria a pena colocarmos o “sarrafo” mais acima para evitar complicações precoces? Todas essas perguntas realmente colocam em xeque a abordagem da doença via arbitrariedade do diagnóstico. O diagnóstico como ferramenta cognitiva binária não dá conta do contínuo de variáveis de um ser humano real. Principalmente quando tratamos de doenças com intervalo de normalidade arbitrário.
Confesso que o texto é sedutor. Entretanto, quando acabei de ler, fiquei com aquela sensação de que não percebi o truque, ou que caí em alguma pegadinha. Depois de ruminar o texto alguns dias, achei uma explicação em um texto de epidemiologia. Tentarei expor isso nos próximos posts.
sábado, 16 de agosto de 2008
Da cor do Cielo
quarta-feira, 13 de agosto de 2008
Os Efeitos Colaterais do Rastreamento
Há um pensamento comum de que caso se possa detectar precocemente uma doença, é melhor que o façamos o mais rapidamente possível, principalmente quando ela for potencialmente letal como por exemplo, um câncer de próstata ou mama. O que não é comum é a idéia de que isso possa trazer prejuízos, muitas vezes graves. A bem da verdade, alguns exames de rastreamento podem de fato trazer mais problemas que a própria doença que procuram.
Um exame de rastreamento (em inglês, screening) para ser útil em rastrear uma doença em grande escala, precisa ser pouco invasivo (de preferência, um exame de sangue ou raio-x simples), barato, ter poucos resultados falso-positivos e falso-negativos. Disse poucos, porque é impossível eliminar situações onde resultados são positivos e o paciente NÃO tem a doença (falso-positivo) ou negativo, o que é mais grave, e o paciente TEM a doença. Por essa razão, os testes de rastreamento em geral são mais sensíveis que específicos o que significa que raramente deixam escapar o diagnóstico. Em compensação, às vezes diagnosticam doenças em quem não tem nada. Se deixar escapar um diagnóstico de uma doença letal é muito grave, diagnosticar doença em quem não tem gera um problema sério: novas condutas!
Esclareço. Um exame de próstata positivo pode gerar uma biópsia prostática. Múltiplas pequenas perfurações que, não raro, sangram de forma importante. Uma imagem estranha na mama pode gerar múltiplas biópsias e um comprometimento psicológico difícil de quantificar por quem nunca passou por uma situação dessas.
Por isso, o debate sobre o screening do câncer de próstata continua e parece interminável. Alguns aproveitam a ansiedade que muitos pacientes têm e, a exemplo do que acontece com o teste de gravidez, lançam teste de autodiagnóstico para câncer de próstata!! Um paciente que compra esse kit sem falar com seu médico já tem um grau de ansiedade maior do que a população normal. Imagine se o teste der um falso positivo!
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
A Blogerização do Pensamento Científico?
Na Science de 18 de Julho, um artigo tem chamado a atenção de blogs científicos. A pergunta do artigo é: qual é o efeito da disponibilização online de revistas nas citações científicas? A pesquisa online alargaria as citações e permitiria a inclusão de artigos fora do círculo de revistas principais em cada campo. Usando modelos matemáticos complexos, o autor demonstra que o que ocorre é exatamente o contrário. Quanto mais online a revista vai ficando (o que o autor chama de deeper backfiles, ou seja, vai colocando seu conteúdo antigo online), mais os autores citam artigos mais recentes e de cada vez menos revistas, restringindo-se às principais de cada campo. Isso se deveria a uma maior velocidade em se atingir a opinião prevalente na literatura, segui-la e assim, objetivamente, citar menos artigos: "By enabling scientists to quickly reach
and converge with prevailing opinion, electronic journals hasten scientific consensus." Mas, no melhor estilo pós-moderno, o autor arremata: "Findings and ideas that do not become consensus quickly will be forgotten quickly." Nada mais certeiro.
Além disso, há uma mudança na forma de browsing. Os cientistas estão usando cada vez mais hyperlinks!:
"Moreover, hyperlinking through an online archive puts experts in touch with consensus about what is the most important prior work—what work is broadly discussed and referenced. With both strategies, experts online bypass many of the marginally related articles that print researchers skim."
Os hyperlinks são linguagem corrente de fóruns, blogs e emails. Formas já clássicas de discussão no ciberspaço. A cibercultura invade a comunicação científica. Ou é o inverso?
terça-feira, 5 de agosto de 2008
Nervo Exposto
Quando confrontado com problemas morais, cientistas tendem a esquivar-se. Como cientistas, sua glória é a excelência em ser técnico. Isto alivia sua consciência e deixa a Ética para os filósofos morais ou místicos de plantão. E, entusiastas da hiperespecialização, os cientistas dividem o trabalho de refletir e acham isso confortável. No final, sempre se pode dizer: “Esse cara está falando muita bobagem porque não conhece o assunto, não vive o cotidiano da ciência e não tem autoridade para nos criticar”.
Como George Simpson chama a atenção:
“To accept the divorce of science from morality is to accept the existent organization of social relationships by not inquiring into the degree to which it holds rational values in common with science. This divorce makes science as a vocation and activity a form of adjustment to any dominant social values. It also makes social problems immune to standards of judgment derived from the social role of the scientist.”
A sobrescrição dos valores sociais pela racionalidade científica, a ascensão dos "experts" e a tecnocracia são os resultados dessa simples fórmula. Na Medicina a tensão é ainda maior. Ela é um valor social em si. Mais que um serviço. Mais que um produto. Nela, a Moral é consubstanciada e escancarada. Como um nervo exposto.
domingo, 3 de agosto de 2008
Ainda Sobre Cientistas Éticos
Achei com algum atraso, um post e um artigo da Science sobre ética científica. O post é do excelente Spoonful of Medicine, cujo feed já se encontra ao lado. O artigo refere-se a um juramento que os novos pós-graduandos da Universidade de Toronto devem se submeter para, digamos, evitar certas "coisas" que estão acontecendo na Ciência Médica mundial. Segue o juramento na íntegra e o artigo no link da Science (para assinantes).
"I, [NAME], have entered the serious pursuit of new knowledge as a member of the community of graduate students at the University of Toronto.
"I declare the following:
"Pride: I solemnly declare my pride in belonging to the international community of research scholars.
"Integrity: I promise never to allow financial gain, competitiveness, or ambition cloud my judgment in the conduct of ethical research and scholarship.
"Pursuit: I will pursue knowledge and create knowledge for the greater good, but never to the detriment of colleagues, supervisors, research subjects or the international community of scholars of which I am now a member.
"By pronouncing this Graduate Student Oath, I affirm my commitment to professional conduct and to abide by the principles of ethical conduct and research policies as set out by the University of Toronto."
Por que criar um juramento para novos cientistas? Os autores respondem:
"The realities of the nuclear age, more frequent acts of bioterrorism, and biotechnological advances such as cloning and stem cells have fueled a call for a similar oath tailored to biomedical scientists that would encourage awareness and discussion of the social and moral responsibilities of students in the life sciences (1-4). At the Institute of Medical Science (IMS), Faculty of Medicine, University of Toronto, as elsewhere, there is rising recognition of the potential for academic misconduct, in part due to the computer and Internet age, in which there is free access to and exchange of information derived from anonymous sources. Another factor is the increasingly competitive nature and "pressure cooker" milieu of scientific training programs due to the pace of scientific progress. Finally, there is the perception that current students take plagiarism, misrepresentation of facts, and scientific fraud less gravely than did previous generations of scientists. Clearly, the time is ripe to consider improved strategies for instilling basic values about acceptable and expected behavior (5, 6)."
É isso aí...
terça-feira, 29 de julho de 2008
Sobre a Relação Médico-Paciente
Numa reflexão um pouco mais elaborada, a médica Pauline Chen acha que o massacrante treinamento do médico disconecta-o do mundo de seus pacientes. Tem algo de verdade. Fiquei impressionado, entretanto, com a genialidade do Dr. Paul Newman que atribui tudo isso ao seguinte: "Doctors are trained to diagnose disease and treat it, he said, while “patients are interested in being tended to and being listened to and being well.”" Soberbo. Achei fantástico o conselho final de levar a listinha ao médico para não esquecer de nada e a conclusão de que estamos de lados diferentes da mesa, cada um empurrando para um lado.
Meus comentários sobre o assunto e o artigo são os seguintes:
1) Faz parte do tratamento do paciente buscar o médico de sua preferência. E não é pelo livrinho do convênio. Quando um paciente bate a porta de um médico que lhe foi indicado para resolução de seu problema, não importa se pela comadre, vizinha, amiga da tia, etc, 50% do tratamento já está dado. A relação parte dessa forma, de uma confiança sublime, terreno que cria a possibilidade de cura ou alívio.
2) Para o médico que confunde ciência médica com medicina é óbvio que a internet desmistificou o conhecimento. Esse médico é o que acha que será substituído pelo computador. (Há um artigo no BMJ que mostra que o Google acerta 58% dos diagnósticos. Vai tirar emprego de muita gente!).
3) Os médicos precisam entender a diferença entre tratar e cuidar.
4) Os pacientes precisam entender que tipo saúde querem para si. Só assim, entenderão que doença têm. Única chance de explicá-la aos médicos. (Sobre isso, este post também).
Por fim, encontrei no hospital um velho professor cuja esposa, com Alzheimer avançado, internara para tratamento de pneumonia. Sua frase mais marcante era "sou do tempo em que a Medicina era ruim e os médicos excelentes. Hoje a Medicina é excelente, já os médicos....."
domingo, 27 de julho de 2008
quarta-feira, 23 de julho de 2008
Medicina e Ética Aristotélica
No livro VI de Ética a Nicômaco, Aristóteles nomeia as cinco virtudes através das quais a alma atinge a verdade (alethéia). São elas, a arte (techné), o conhecimento científico (episteme), a sabedoria prática (fronésis), a sabedoria filosófica (sofia) e o entendimento (noûs). Todas podem atingir a verdade igualmente.
Aristóteles primeiramente define episteme como conhecimento científico das coisas imutáveis. Notar que esse tipo de conhecimento não tem nada a ver com a ciência atual que tem na experimentação, a comprovação de suas verdades. A episteme é um tipo de conhecimento apodítico normalmente indutivo e contemplativo, conseguido através do entendimento (noûs) que permite intuir a verdade. É comunicável podendo ser aprendida e ensinada. É um caminho que possibilita atingir uma sofia - o conhecimento filosófico. A techné, por sua vez, é um conhecimento de uma habilidade que nos permite saber quais passos dar para fazer algo vir a ser. Algo que poderia não ser da forma que é, portanto, mutável ou contingente. A preocupação da techné é com o produto final. Como habilidade pode ser aprendida e esquecida. Já a fronésis é frequentemente traduzida como prudência ou sabedoria prática. Envolve deliberação e escolha sobre o bem viver. É a forma de raciocínio apropriada à praxis pois lida com o que é variável e sempre envolve uma mediação entre o universal e o particular. A produção (poiésis) é um fim em si, sendo que a ação fronética não, pois seu télos está em si mesma. Há uma certa ambiguidade em função da profusão de exemplos relacionados à Medicina utilizados por Aristóteles, mas ela parece se aproximar mais de uma techné. Diz-nos Jaeger sobre as formas de conhecimento na Grécia Antiga:
“(...)apresentando-se ainda como comunicação de conhecimentos e aptidões profissinais a cujo conjunto, na medida em que é transmissível, os Gregos deram o nome de techné. (...) As regras das artes e ofícios resistiam naturalmente, em virtude da sua própria natureza, à exposição escrita dos seus segredos, como esclarece, no que se refere à profissão médica, a coleção dos escritos hipocráticos”.
A Medicina foi descrita como techné por Platão (iatriké techné) no Cármides (Da Sabedoria), pelos estóicos e por Plotino (Eneádas). Aristóteles considera a Medicina uma techné que persegue um télos do bem, a Saúde. A política por exemplo, persegue seu télos, a boa vida e o bem viver para a pólis e por conseguinte, de todos os homens sendo por isso, a sabedoria a qual todas as outras estariam subordinadas. Apesar de tais descrições, existe ainda certa discussão sobre se a Medicina é uma techné ou uma fronésis . Porém, o médico ao deliberar sobre quais ações tomar para produzir a saúde em seu paciente, adota uma série de procedimentos muito semelhantes ao frônimos , o agente da fronésis. Além disso, ao utilizar-se de algum tipo de conhecimento prévio e geral, estará usando uma episteme em um sentido lato. Apesar de ser uma techné, tem um procedimento fronético inerente, além de utilizar alguns conceitos epistêmicos. Parece que, ao menos em Aristóteles, a Medicina se dá numa área de fronteira, como mostra a figura.
Essa abordagem da ética humana se distingue da abordagem da natureza (platônica) pois na ética aristotélica não atuam as “forças” da physis, apenas o ethos do homem. A imutabilidade da compreensão das coisas da natureza dá lugar a um contexto onde as situações nem sempre são como são, pois podem também ser diferentes. “O problema então é saber como pode se dar um saber teórico sobre o ser ético do homem”. Que tipo de saber seria esse? Dito de outro modo, um saber geral que não saiba aplicar-se à situação concreta, permanece sem sentido. Por outro lado, um saber que envolva o homem e suas coisas como objeto, necessita de um conhecimento-em-serviço que tem a ver com a experiência do agente, conhecimento esse, difícil de transmitir.
Parece ser esse o ponto, segundo vários comentadores, no qual Aristóteles escolhe a Medicina como paradigma de seu método. Ao longo da “Ética a Nicômaco” , cita a Medicina tantas vezes ao ponto de Jaeger afirmar que:
“O exemplo da medicina é usado não apenas como um modelo do método para análise teórica da ética, mas igualmente para sua aplicação prática na vida e educação humanas. A medicina era o protótipo que combinava ambos aspectos e era exatamente esta combinação que fazia dela o perfeito modelo para o filósofo ético”.
Quantas mudanças ocorreram desde então! Não somos mais exemplos de conduta ética. Viajamos à reboque de modismos. Nossa relação com a ciência que embasa nossas condutas é espúria. Não dialogamos com leigos. Não dialogamos com médicos de outras especialidades. Não refletimos.
Ao procurar uma maneira para explicar sua educação moral, Aristóteles encontrou na Medicina muito mais que uma metáfora. Na verdade, ela se tornou um modelo constitutivo através do qual muitas escolas helenísticas pensaram e praticaram a ética. Se, por um lado a Medicina tinha um modus operandi bastante característico na antiguidade clássica a ponto de servir como modelo de conhecimento moral em serviço, essa não é, efetivamente, sua condição hoje. A separação entre areté e logos operada por Aristóteles deslocou a Medicina de seu centro ético empurrando-a para um posicionamento muito mais epistêmico.
Qualquer atividade humana que se preocupe com os meios para atingir determinados fins é uma atividade ética tendo portanto, um lugar para o conhecimento fronético. A razão instrumental frankfurtiana não contempla uma racionalidade desse tipo. Não cobro, e nem posso cobrar, uma Ciência ética. Exijo, porém, cientistas éticos.
domingo, 20 de julho de 2008
60 Anos da SBPC
- revolução educacional (...);
- superação das desigualdades sociais (...); (até aqui, vá lá...)
- promoção da inovação nas empresas, superando o fosso ainda existente entre universidade e setor produtivo;
- criação de uma rede metrológica e de padrões ampla, com base científica e capacidade de promover qualidade entre as relações da exportação/importação e produção/consumo.
O final é apoteótico:
"No entanto, algumas décadas de luta ainda serão necessárias para colocar a ciência brasileira não somente em pé de igualdade com as nações mais avançadas, mas sobretudo a serviço do desenvolvimento socioeconômico do país".
Nenhuma palavra sobre ética.
Disease Mongering
A Folha (Caderno Mais!) de hoje vem com quatro artigos que muito têm a ver com alguns dos conteúdos deste blog. Vou comentar dois:
E primeiro lugar a entrevista com Christopher Lane, professor do departamento de Inglês da Northwestern que publicou o livro "Shyness" denunciando algo que já é meio batido no meio médico (ver Disease Mongering na Plos) que é a criação de doenças com objetivos prescritórios (neologismo meu!). Não li o livro e acho que não vou ler. De interessante é a chamada para a mudança no DSM IV (catálogo de doenças que facilita a sua classificação) do tipo de definição psicanalítica para biomédica nos últimos anos sugerindo a virada reducionista na ciência médica (discutida à exaustão neste blog). Pelo que sugere a entrevista, trabalha com o conceito de normalidade para definir a doença e incorre em erros clássicos associados a esse procedimento (ex. achar que a idéia de normal ficou estreita demais hoje em dia e isso teria como resultado a medicalização).
Em segundo lugar, a (surpreendente) entrevista de Valentim Gentil Filho. Neuropsiquiatra com tendências reducionistas, dá uma excelente entrevista e aponta um erro clássico da análise do livro (e dos médicos americanos em geral) que é considerar o DSM IV (um catálogo, como dissemos) como um livro-texto. É como se o leitor resolvesse, por exemplo, aprender literatura olhando o catálogo de uma livraria. Vale a leitura pelo olhar médico equilibrado. Fica clara a preocupação com o paciente que sofre. Se o sofrimento é uma sociopatia, ok, o médico ao invés de mudar a sociedade, acha mais simples aliviar o padecimento de seu paciente. Parece mais ou menos óbvio. Depois, chama a atenção para a disputa ferrenha e muitas vezes desleal, de clientes no bilionário mercado da psicoterapia. É uma briga de bastidores e o cliente pouco ou nada sabe. Valentim denuncia um certo exagero nas acusações sobre medicalização, muitas delas oriundas da vertente dita "Psi", que não pode prescrever por lei. Por outro lado, a falta de escrúpulos de maus profissionais e as recém-descobertas associações de pesquisadores com a indústria farmacêutica que originaram estudos tendenciosos sobre tratamento de doenças comuns e crônicas (as que mais interessam à Big Pharma, entre elas, a depressão) fez despencar a credibilidade da classe médica.
Muito do que se discute, tem a ver com o conceito contemporâneo de doença. Esse conceito envolve não apenas a normalidade (pois o "normal" pode ser o "comum", o "natural" ou o que "não dá sintomas", entre outros!), como também a produção social do que seria uma vida saudável e boa, o que introduz uma outra dimensão bastante mais complexa na discussão. Por mais filosófica, árida e até mesmo chata, que seja essa discussão, acredito que o caminho é esse. A Medicina é uma atividade moral pois deve preocupar-se com os meios para atingir seus objetivos. A minimização do padecimento humano passa também pelo reconhecimento de que tipo de padecimento estamos a discutir.
sexta-feira, 11 de julho de 2008
UTI, Aviões e o Checklist
"A study of forty-one thousand trauma patients—just trauma patients—found that they had 1,224 different injury-related diagnoses in 32,261 unique combinations for teams to attend to. That’s like having 32,261 kinds of airplane to land."
É uma boa leitura para o fim-de-semana (8 páginas).
quarta-feira, 9 de julho de 2008
Doação de Orgãos
Nesse sentido, os eventos com transplantados, divulgação de casos que deram certo e as campanhas de doação são muito importantes. Divulgo aqui uma peça publicitária que é uma obra de arte. Não sei quem é o autor, nem a agência, mas estão de parabéns. É de 1 minuto, mas parece muito mais, tal a intensidade. Apela aos sentimentos dos familiares de potenciais doadores de forma bastante inteligente e não piegas, o que é difícil, convenhamos. Mas a propósito, tem outro jeito de fazer isso?
Doe orgãos.
terça-feira, 8 de julho de 2008
As Vítimas do Álcool
Art. 1o Esta Lei altera dispositivos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do ·álcool (...).
Lembro que com o cinto de segurança, foi a mesmíssima coisa. Apenas 2 blogs que pude pesquisar foram a favor da lei: Paulo Lotufo e Gravataí Merengue.
Segundo a ABRAMET (Associação Brasileira de Medicina do Tráfego) no Brasil, a cada dia, cerca de 100 pessoas morrem e mil ficam feridas. São cerca de 35 mil mortos por ano (19,4 a cada 100 mil habitantes) e 120 mil internações só na rede do SUS. Desses, 40% são decorrentes de ingestão alcoólica.
A lei não proíbe (e nunca proibiu) as pessoas de beberem. Apenas não permite que bebam e dirijam.
É isso. O Ecce Medicus é a favor.
Religião e Mortalidade
"There really is no evidence that the suggested mechanisms of church outreach/ charity etc. has any effect at all on differential mortality statistics. And, on the contrary, there is a vast literature on the positive correlation of IQ and health e.g.: http://www.udel.edu/educ/gottfredson/reprints/2004fundamentalcause.pdf
http://www.bmj.com/cgi/content/extract/329/7466/585 and this may indeed be a fundamental factor in human evolutionary history, maybe driving the increase in IQ both pre- and post- the out-of-Africa event:
http://www.udel.edu/educ/gottfredson/reprints/2007evolutionofintelligence.pdf
Posted by: BGC July 5, 2008 10:04 AM "
domingo, 6 de julho de 2008
Marvada Pinga
A lei seca e a secura do Estado
Rigor excessivo contra motoristas que ingerem álcool oculta um Estado fraco e põe em risco o próprio respeito à norma
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
É dever moral evitar acidentes causados pelo exagero no consumo de bebida alcoólica. É dever do Estado coibir o desatino de pessoas alcoolizadas dirigirem seus veículos; cabe-lhe puni-las segundo o rigor da lei. Como, porém, se determina esse rigor para torná-lo efetivo? Bebidas alcoólicas tradicionalmente fazem parte de nosso cardápio. No Mediterrâneo, o vinho, o trigo e a azeitona compuseram a base da alimentação que permitiu o desenvolvimento do Ocidente. Na França costuma-se dizer que uma refeição sem vinho é como um dia sem sol. E os cardiologistas aconselham que se tome um copo de vinho tinto diariamente para evitar doenças coronárias. O problema, portanto, não é o álcool, mas o exagero e o vício. Aliás, como a comida e o sexo. O caso do álcool é mais pungente, pois seu consumo desmesurado, além de causar danos a quem bebe, freqüentemente e cada vez mais atinge pessoas inocentes, que nada têm a ver com os exageros e os vícios alheios. Isso porque nos tornamos cada vez mais dependentes do automóvel como meio de transporte.
Situação esdrúxula
E o caso das grandes metrópoles, em particular o de São Paulo, mostra como medidas urgentes devem ser tomadas.
De um lado, diminuindo o peso do transporte individual; de outro, coibindo o exagero do consumo do álcool. Ora, toda a questão reside na medida desse exagero. Segundo a Folha de domingo passado, os EUA e o Reino Unido admitem oito decigramas de álcool por litro de sangue, a França, cinco, e o Brasil, dois, junto com Noruega e Suécia. Essa medida equivale a proibir que a pessoa dirija depois de beber um copo de cerveja ou de vinho.
Punição à maioria
Chegamos a uma situação esdrúxula: em vez de o Estado determinar a medida da segurança, simplesmente se isenta dessa medida e pune aquele que bebe moderadamente, ciente de seus limites e de suas obrigações sociais.
Em resumo, pune a maioria para evitar que desregrados causem malefícios. Na Noruega e na Suécia, a tolerância zero tem lá suas razões de ser. No Brasil, esse exagero simplesmente repete o espetáculo de violência de um Estado fraco, que encena uma força desproporcional a seus recursos simplesmente para atemorizar. Isso equivale a legislar para que a lei não pegue, obviamente depois de saciar a boa consciência dos bem pensantes. Como de costume, os brasileiros enfrentam um problema desfraldando a bandeira do rigor da lei para deixar tudo como está, menos o respeito pela lei, o qual se degrada a cada dia.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
sexta-feira, 4 de julho de 2008
Mais Autópsias
Tenho recebido comentários, alguns bastante indignados, sobre a questão das autópsias. Sejamos breves: não sou contra a autópsia como instrumento de conhecimento médico. É uma atividade médica secular. É interessante notar o comportamento dos médicos frente à autópsia de acordo com o conceito de doença. Na medicina antiga (gregos e galênicos) a autópsia era inútil pois a doença era uma alteração da circulação dos humores. Não se podia aprender nada do corpo morto: humores não circulam em cadáveres.
Quando se associou a doença com a anatomia patológica - coisa que aconteceu no século XVIII e XIX - a autópsia passou a ser um instrumento importantíssimo, permitindo grande avanço da medicina e cirurgia. São figuras proeminentes dessa época Morgagni, Xavier Bichat e, principalmente, Rudolf Virchow.
Entretanto, várias fontes, na última década, têm percebido uma queda no número das autópsias (a exceção são os estudos médico-legais, que vêm aumentando). Para ver algumas, clique aqui. Post no Ecce Medicus. Outros blogs. A literatura médica vem dando mais destaque para esse fato, sempre com um tom de lamentação, atribuindo o fato a uma falta de estímulo aos mais jovens por parte dos mais experientes, custos, medo de processos, entre outros.
Na visão que este blog defende, essas são apenas consequências e não as causas. A causa real seria a de que o conceito de doença vem novamente apresentando mudanças radicais, principalmente nas últimas décadas, o que está exercendo forte influência no número de autópsias realizadas. A exemplo da medicina galênica, a autópsia passa a não ter mais importância para o médico, comunidade médica e familiares. Parece estar havendo um retorno à medicina do vivo! (O que faz todo sentido, aliás, dada a necrofobia dos tempos atuais). Além disso, a fragmentação do conhecimento médico é cada vez maior e os ramos integrativos da ciência médica estão minguando tal e qual as autópsias (ver este post).
Procuram-se explicações para o fenômeno. Habermas: fenômeno de sociedades tardo-capitalistas baseadas na tecno-ciência (autópsia=medieval)? Baumann/Nietzsche: necrofobia, neocristianização (autópsia=violação/violência)? Lyotard: sociedade virtual, simulacros (melhor em bits que em carne e osso)? E por aí vai.
A indignação dos patologistas e defensores da autópsia deveria transmutar o choro em ação e adaptar a autópsia à nova racionalidade médica emergente. Só assim, poderíamos revalorizar a autópsia como procedimento medicamente útil. Quem sabe veríamos hospitais como o Einstein, Sírio-Libanês ou Oswaldo Cruz alardearem como estratégia de marketing a (re)inauguração de suas salas de autópsia?
quarta-feira, 2 de julho de 2008
Reprodução de Células-Tronco
Pela primeira vez na história da Ciência, cientistas brasileiros conseguiram fotografar a reprodução de uma célula-tronco. No Ecce Medicus em primeira mão, antes da Science e da Nature.
terça-feira, 1 de julho de 2008
Technological Invention of Disease and Decline of Autopsies
domingo, 22 de junho de 2008
In Silico Clinical Trials!?
Participei neste fim de semana do V Fórum Internacional de Sepse. Foram palestras interessantes e que sempre acabam por acrescentar algum conhecimento ao médico praticante. Mas é inevitável a sensação de que apesar do corpo de conhecimento sobre o assunto ter aumentado consideravelmente, pouco evoluimos quanto a potenciais intervenções terapêuticas. Há alguns anos, surgiu um pacote de intervenções que parecia indicar um caminho. Hoje, 6 ou 7 anos depois, não há uma daquelas condutas que não esteja sendo reavaliada, algumas tendo seu grau de recomendação rebaixado, a ponto de um palestrante atribuir a pequena redução na mortalidade conseguida ao fato do protocolo ter trazido o médico à beira do leito do paciente, como um efeito Hawthorne médico.
Coincidentemente, na Plos de 25 de Abril, um incrível artigo sobre Translational Systems in Biology, que poderia ser traduzido em algo como sistemas de intercomunicação em biologia (se alguém pensar em alguma coisa melhor, por favor me avise!!), falando exatamente sobre sepse. Vejamos o autor:
"Sepsis was the motivating clinical problem that led to mathematical modeling of inflammation. Intensive care physicians recognize that sepsis therapy has not changed substantially for decades despite an enormous amount of data generated from in vitro and animal studies, as well as from clinical studies [41]–[44]. The first approaches were designed to answer the question, “What are the dynamics of sepsis, and does our lack of therapies imply some yet undiscovered mediator of the syndrome?” In mainstream biology and biotechnology, this question motivates the ongoing search for a “magic bullet” to treat sepsis. The translational systems biology formulation of the question, though, was reworded to reflect a different philosophical approach to research, i.e., “Is the current state of knowledge insufficient to explain observed clinical behaviors?” Thus, the missing knowledge was assumed not to be a missing molecule or pathway, rather the missing knowledge was assumed to be an understanding of how all the various components involved in the sepsis response are organized and how they interact to generate a behavior."
Como corolário desse tipo de modelagem, surge a possibilidade de realizarmos ensaios clínicos totalmente simulados (in silico ou wet) onde ainda poderiamos incluir dados genéticos entre outros deteminismos. O esquema acima é de um artigo da Science (aqui, para assinantes) que fala sobre a teoria dos sistemas em biologia, citado no artigo em questão.
A abordagem multi-nível e a modelagem matemática de sistemas biológicos nos trará importantes informações sobre estados complexos onde vários componentes de vários níveis de complexidade (moléculas, proteinas, células, células invasoras, etc) interagem não de forma unívoca em resposta a insultos. Esse tipo de interação que aliás, marca os seres vivos e suas doenças, não se presta a abordagens tipicamente reducionistas, uma das grandes diferenças reconhecidas entre a biologia e as ciências naturais. Vitalismos à parte.
sexta-feira, 20 de junho de 2008
O Desdiagnóstico
Em determinados pacientes, saber qual é a doença e tratá-la corretamente pode ser menos importante que saber quais doenças não se deve considerar, pois o custo para excluí-las - e aqui entenda-se não só o aspecto econômico, como também o custo individual do paciente, traduzido na forma de sofrimento físico e psicológico - não tem uma relação favorável com o benefício que o diagnóstico pode trazer. Muitos diagnósticos são, atualmente, tecnologicamente constituídos. Por exemplo, no caso da embolia de pulmão, um exame de sangue (d-dímero) e uma tomografia são muito mais valorizados que a história clínica do paciente. Não são infrequentes diagnósticos errôneos de embolia pulmonar com consequências sérias pois os pacientes necessitam de anticoagulação. De que forma um médico pode discordar de uma tomografia? Esse talvez seja um dos papéis do médico diagnosticador contemporâneo.
Seu papel atual seria também DESDIAGNOSTICAR.
Para o médico, o diagnóstico é um constructo, mais que apenas um rótulo, é um discurso, ou uma formação discursiva. Diagnosticar é, antes de mais nada, elaborar um discurso sobre o paciente. Discurso esse que deve seguir as normas da lógica, ter uma sequência temporal coerente e ser adequado à matriz científica vigente. É muito interessante observar em discussões clínicas como médicos diferentes elaboram discursos diferentes sobre o mesmo paciente e até sobre os mesmos aspectos de sua doença. O discurso acopla-se a uma realidade quando um determinado tratamento baseado nele foi eficaz. O discurso é ele mesmo tão vivo quanto o paciente, ora valorizando, ora minimizando determinados aspectos, acrescentando ou suprimindo eventos de acordo com o que se quer demonstrar. Por isso, desconstruí-lo não é tarefa simples. É um preciso um tipo especial de médico. Um profissional que não se presta a ficar preso a exames, que para ele, são subsidiários.
Quantos médicos conhecemos hoje em dia que seriam capazes de desprezar o laudo de uma tomografia computadorizada por não coincidir com seu julgamento clínico?
quarta-feira, 18 de junho de 2008
Philanthropy Based Medicine
Tem-se falado mal das indústrias farmacêuticas - a Big Pharma. Em especial, sobre o modo como elas, de uma forma geral, vêm tratando as evidências que elas mesmas produzem. Várias são as acusações de distorções de dados e até tentativas recentes de não publicar estudos negativos (aqueles nos quais o efeito esperado de determinada droga não pôde ser demonstrado).
Não que a grande indústria seja filantrópica, mas existem ações positivas de fato. Como conhecer essas ações e, o que é mais interessante, como comparar ações de diferentes corporações entre si é a pergunta que o access medicine index tenta responder. Os objetivos da fundação são:
"The Access to Medicine Foundation believes that improving global access to medicine is a responsibility of us all. That includes governments, medical researchers and nongovernmental organizations. It also includes investors and pharmaceutical companies, which, as the owners of vital knowledge, technology and infrastructure, have particular roles to play. Indeed, the last Millennium Goal includes the aim to provide access to affordable essential drugs in developing countries in cooperation with pharmaceutical companies."
No site (muito bonito por sinal!), pode-se baixar relatórios sobre as indústrias, verificar áreas onde elas têm uma atuação mais decisiva e ver o ranking de 2008. A campeã esse ano é a britânica Glaxo Smithkline.
A exemplo do que descrevemos para as notícias médicas divulgadas na mídia leiga, tal iniciativa deve ser usada para argumentar e repensar o papel das companhias farmacêuticas na melhoria da qualidade de vida das pessoas, principalmente as de países em desenvolvimento.
Da mesma forma que se propõe um consumo dirigido a empresas que demonstram ações ambientais, talvez chegue o dia em que prescreveremos medicações baseados em filantropia.
O Médico Diagnosticador
O médico diagnosticador ficou domesticado dentro de esquemas de raciocínio e subjugado por enormes e sofisticadas máquinas que cortam o corpo humano sob todos os eixos e o reconstroem em imagens tridimensionais, fazendo ver o que não se vê. Ficou refém de exames específicos e sensíveis tendo de escolher entre o raciocínio estatístico e o fisiopatológico de sua formação original. Talvez daí provenha uma das razões do sucesso da série House: seu confronto (e até desprezo) frente a tecnologia médica e ao saber comum da medicina.
A tecnologia não só permite o diagnóstico como vai mais além: constitui o próprio conceito de doença . Há doenças forjadas dentro de um ambiente totalmente tecnológico. Mas ainda surge outro problema. Se se pode diagnosticar doenças que ainda não se manifestaram, então que exames realizar no paciente que se diz são? Forças-tarefa em vários países esforçam-se em responder a pergunta laica: que doenças ocultas podemos diagnosticar a tempo? O exame clínico não mais basta. Pior, a opinião médica não basta. O próprio paciente indica o exame complementar. Trafega de médico em médico até conseguir a solicitação do exame que lhe acalma. É uma solicitação de seu círculo familiar, de amigos ou até de médicos amigos, em suma, da própria sociedade na qual a tecnociência é a ideologia.
Neste quadro, qual seria o papel do médico diagnosticador?
segunda-feira, 16 de junho de 2008
House, Holmes, Bell, Shore e Doyle
Vem fazendo sucesso a série médica House M.D. (no Brasil, simplesmente House exibida pelo canal pago da Universal). Criada por David Shore para a FOX, a série tem como ator principal o britânico Hugh Laurie interpretando o protagonista Gregory House e, há quase 4 anos em cartaz, já angariou prêmios importantes. Dr. House é infectologista e nefrologista e tem como principal característica o fato de elaborar diagnósticos bastante difíceis. Além disso, é portador de um grande mau-humor e cinismo praticamente incompatíveis com a profissão médica, preferindo interagir com seus pacientes por intermédio de seus residentes. O autor tem em Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle a fonte inspiradora do personagem principal, inclusive no trocadilho do nome . Doyle era ele próprio médico e nunca escondeu que seu personagem mais famoso foi, por sua vez, inspirado em seu professor na Universidade de Edimburgo: Dr. Joseph Bell. Bell era considerado um mágico por seus alunos. Capaz de diagnosticar pacientes no momento de sua entrada no consultório, também fornecia dados epidemiológicos e falava com exatidão sobre suas vidas pessoais antes mesmo que os espantados pacientes sequer abrissem a boca. Mas por que médicos assim ainda chamam tanto a atenção do público e da mídia em geral?
quinta-feira, 12 de junho de 2008
O Frio e o Gênero
Pesquisa de utilidade pública para o Inverno que está chegando.
Está comprovado "cientificamente" (acho demais essa frase bombástica):
Mulher sente mais frio que homem. (desde 1978)
PS. Isso justifica alguma brigas conjugais...
terça-feira, 10 de junho de 2008
Ainda o Cérebro Humano
segunda-feira, 9 de junho de 2008
Falsas Esperanças e Medos Injustificados
Na Plos, para variar, um editorial sobre a avaliação de notícias médicas divulgadas na imprensa. Vários países têm sites que atribuem notas (estrelas) às notícias que são veiculadas na mídia leiga de acordo com critérios tipo ABC (Accuracy, Balance, Completeness). São organizações não-governamentais dirigidas por médicos e/ou jornalistas que têm grande credibilidade. Nos EUA temos o Health News Review; na Austrália é o Media Doctor e no Reino Unido é o Behind the Headlines.
São explicitadas as causas de más reportagens sobre saúde e medicina, como no trecho abaixo:
"The origin of hype in health stories goes even deeper than journalists' lack of training and the hurried pace of broadcasting. Ransohoff and Ransohoff have described medical researchers and reporters as “complicit collaborators,” both of whom may benefit from a sensationalized story [7]. Researchers benefit from the publicity because it may increase citations to their study and help their chances of promotion or tenure, while a highly visible story of a dramatic medical breakthrough can boost a journalist's career. Sensationalism occurs, they say, “when the participants stand to benefit from publicity without a corresponding penalty for misleading reports.” HealthNewsReview.org could now provide such a penalty with its public naming and shaming of poor reporting, which in turn may drive journalists toward more balanced reporting."
Esse tipo de trabalho tem sido realizado no Brasil principalmente na blogosfera. Blogs como do Paulo Lotufo e do Marcelo Leite, são iniciativas isoladas dentro de um panorama desértico. A esmagadora maioria dos blogs sobre saúde e medicina no Brasil são de "dicas", vendedores de remédios ou de tratamentos de eficácia duvidosa. Não há uma leitura crítica ou um ombudsman de notícias médicas. O leitor/consumidor brasileiro não tem como se proteger. A saída pelo menos, é ler o dos gringos.
domingo, 8 de junho de 2008
Doze de Junho
Mais imagens médicas muito interessantes no Street Anatomy. Essa é pelo dia dos Namorados.
PS. Tentando limpar a barra por ter falado da sogra...
sexta-feira, 6 de junho de 2008
A Importância da Sogra
Depois de muito tempo falando mal de sogras, sobretudo da minha, me chamou a atenção este estudo, que é meio velhinho (está fazendo 10 anos), mas muito interessante.
O racional é o seguinte: A fêmea humana é única entre os primatas. Ela demonstra uma longevidade incomum após o período fértil, como mostra a figura. Isso incomodou os pesquisadores e várias explicações e teorias foram aventadas. Esse artigo, sugere que a presença da avó, aumenta as chances da prole sobreviver pois permite a divisão de trabalho e a transmissão de know-how para a mãe inexperiente. Nas palavras do autor:
"The grandmother hypothesis directs attention to likely ecological pressures for variation. The use of high return resources that young juveniles cannot handle favors mothers and daughters remaining together. As daughters grow, they acquire the strength and skill needed to help feed their younger siblings (5,41). When daughters mature, the assistance of aging mothers continues to enhance the benefits of proximity (3)."
E continua:
"Senior females could affect the fertility of their sons’ mates through food sharing as well as that of their daughters. But the grandmother hypothesis, combined with the assembly rules of Charnov's Model and the variation in ape life histories highlighted here, favors co-residence between older mothers and their daughters."
Co-residence between older mother and their daughters.... Sei... Essa história já vem de muuuito longe.
quinta-feira, 5 de junho de 2008
A Barba e a Ciência
Seria a barba um sinal de sabedoria ou um meio de cultura que pode transmitir infecções? Grandes cientistas ostentavam barbas e bigodes poderosos. Fica bem a um médico usar barba ou é anti-higiênico? Por incrível que pareça existe um ensaio clínico sobre o assunto. Também existem estudos microbiológicos e um artigo em um site de ciência do qual peguei a foto acima.
De minha parte, às vezes deixo uma barba incipiente alardeando um descanso à pele. Confesso que no espelho, na dependência do humor, oscilo entre um George Clooney tupiniquim e um amarfanhado pós-plantonista. Infelizmente, nunca me senti mais inteligente.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
O Cérebro Humano
Ao ler um artigo sobre genética evolucionista no Amigo de Montaigne, encontrei o artigo original de novembro de 2007, que cita o paper acima. Segue um trecho do texto de Bruce Lahn:
"Accelerated evolution of brain genes in the descent of humans. To address whether the evolution of the human brain has left genome-wide genetic imprints, we systematically examined the evolutionary history of genes implicated in diverse biological aspects of brain function. This analysis showed that, on average, protein sequences of brain-related genes have evolved more rapidly in primates than in other mammalian taxa, and that this accelerated evolution is most dramatic along the lineage leading to humans. Moreover, when examining only the subset of genes that functions predominantly in brain development, the high rate of evolution in the human lineage becomes even more pronounced.
The above results argue that the remarkable phenotypic evolution of the human brain is correlated with accelerated evolution in the protein-coding regions of the underlying genes, particularly those involved in brain development. These results also argue that the accelerated evolution, visible across many genes, likely reflects the accumulation of a large number of advantageous mutations scattered across many brain-related genes in the course of primate and human evolution."
O texto esbarra na teleologia cósmica a la Aristóteles. Não fica claro pelo texto, a evolução histórica dos genes relacionados ao advento do cérebro humano. Saber se o aparecimento do cérebro humano deixou pegadas genômicas parece querer encarar o problema pelo avesso. Ficamos com a impressão de que, devido ao um acúmulo de um grande número de mutações vantajosas, tivemos uma evolução acelerada.Tais mutações são raras. Não seria pertinente perguntar se tais genes já não estavam lá e foram selecionados por algum fator que pressionou a evolução dos hominídeos nessa direção? Mostrar que temos genes para cabeça grande não é o mesmo que justificar nossa cabeça grande. A história do aparecimento do fator que causou a seleção é, no meu modo de ver, a pergunta evolucionária.